Clima na patagônia:
Em el chalten e torres del paine o clima é uns dos mais imprevisíveis que se possa encontrar no planeta. De uma gama de sol e 25ºc até neve e -10º, você pode encontrar tudo: vento e sol, ventania e neve, furacão e chuva, furacão e sol, furacão e neve, sol e brisa...Um grande caleidoscópio climático. Isto se explica em grande parte pelo fato de as suas regiões estarem coladas ao campo de gelo sul, que é uma imensa massa de gelo, que possui micro clima próprio e em geral é ruim! Além é claro de se encontrarem em latitudes muito baixas, sendo também atingidas por frentes frias antárticas.
Esse clima imprevisível poderia ser um empecilho, mas na verdade é o que torna essa região tão fascinante e bela.
TORRES DEL PAINE
Parque Nacional Torres del Paine, Patagónia chilena fica no fim dos Andes , um paraíso de montanhas, lagos e glaciares, povoado de criaturas extraordinárias. Uma espécie de Arca de Noé, encalhada nas águas frias do extremo sul do Chile. A última fronteira, para quem procura a natureza no seu estado mais puro.
Punta Arenas tinha sido a última cidade “grande” - é capital de província - , e já anunciava este tempo incerto e cinzento. Como em todos os pontos do globo onde a meteorologia é pouco favorável, o casario tem mais cor do que a própria natureza. Há poucos prédios, e as casas multiplicam verdes, azuis, brancos e vermelhos, exorcizando a falta de cor e luz natural. Para incentivar a fixação de pessoas neste habitat tão difícil, na margem ocidental do Estreito de Magalhães, o governo chileno sempre ofereceu benefícios, promovendo o comércio e facilitando o acesso dos barcos ao porto. Até agora, Punta Arenas tem conseguido evitar os grandes problemas normais nas cidades, como o excesso de tráfego ou a falta de segurança. O ambiente ainda é muito pacato e familiar, embora já se conte com uma população de cerca de cem mil habitantes.
Não falamos de populações índias, claro, mas das posteriores e actuais. Para os Onas, Tehuelches, Alacalufes, e outras tribos que por aqui viviam, na época em que Fernão de Magalhães explorou a zona ao serviço dos reis de Espanha, a história foi muito diferente. Como a agricultura é quase impossível, os índios nativos desta área sobreviviam da recolecção, da pesca e da caça, sobretudo ao abundante guanaco, um parente do lama. Com a chegada dos colonos e dos seus imensos rebanhos, é provável que tenham achado as ovelhas mais fáceis de caçar...
A história é conhecida e, infelizmente, já se repetiu muitas vezes: com os seus próprios territórios interditos à caça, entraram em conflito com os colonos e foram dizimados sem dó nem piedade - chegaram a ser abatidos por caçadores profissionais contratados para o efeito. Como se não bastasse, com os europeus chegaram também doenças desconhecidas nesta parte do mundo, que se tornaram epidémicas e causaram milhares de baixas entre os nativos. Enfim, os primeiros habitantes da zona foram desaparecendo e dando lugar a museus e decorativos monumentos ao índio, espalhados pelo país. Em Punta Arenas, encontram-se os testemunhos desta época no Museo del Recuerdo e na Casa Braun-Menéndez, a mansão de um dos pioneiros-colonizadores.
Quanto a Magalhães, está no centro da praça, e parece surfar numa tábua de pedra, acompanhado por dois índios. Os Andes terminam aqui, na XIIª Região, a que tomou o seu nome: Região de Magalhães e Antárctica Chilena. Depois de sete mil e quinhentos quilómetros pelo interior da América do Sul, a grande cordilheira mergulha nas águas frias da Antárctica, numa apoteose de torres de pedra e glaciares deslizantes. Esta ponta sul da América está dividida entre o Chile e a Argentina, de terra firme à Ilha Grande de Terra do Fogo, de seu nome completo.
Apesar da aparente “inutilidade” do território, agora que o preço da lã já não sustenta folgadamente grandes fazendas, há algum gás e petróleo em jogo, e os dois países acabam por se desentender com alguma regularidade, a propósito de um lago ou de um glaciar. Como é próprio dos vizinhos. Aliás, os chilenos têm uma predilecção especial pelas “anedotas de argentinos”, sempre na linha da “definição de ego: aquele argentinozito que todos temos dentro de nós”. Sequestrados pelo mau tempo, entre dois passeios fugidios pelas ruas de traçado quadrangular, onde teimávamos em perder-nos, conversávamos com chilenos, de passagem pela cidade ou vizinhos de porta, fechados e despretensiosos, sempre prontos a dar conselhos sobre o seu país. Nenhum deles conhecia Torres del Paine.
Este turismo sazonal transformou a vilória patagónica numa verdadeira indústria de pensões, restaurantes, agências de viagem, lojas de aluguer e venda de material de montanhismo, etc. Durante dois dias recolhemos informações, horários dos transportes, coleccionámos latas e pacotes pelos supermercados. Sabemos que há refúgios no Parque, mas estão demasiado perto da estrada e podem estar superlotados; quando partirmos para o interior, dificilmente estaremos perto de algum, de cada vez que tivermos fome.
Na pensão familiar que escolhemos, caminhantes de regresso confirmavam o que sabíamos sobre o lugar e muito mais, enquanto digeriam grossas postas de salmão, que aqui é mais barato que um pratinho de batatas fritas. Depois das fugazes refeições de campanha, todos tiravam a barriga de misérias. Havia quem se queixasse da dificuldade de alguns trilhos, lamentando os dias de chuva, sem visibilidade, o vento uivante e frio que lhes tinha roubado o sono. Dois alemães deambularam cinco dias no Parque sem ver o sol. Ninguém estava arrependido. À noite, cada um festejou a partida à sua maneira: o grupo de espanhóis apanhou uma bebedeira ruidosa, perturbando o grupo dos americanos, preocupados em ver um vídeo de aluguer com muita acção. Os alemães conversaram baixinho.
Do bom tempo, nem uma promessa. As nuvens continuaram negras, largando chapadas violentas de chuva. Cisnes de colo negro tentavam não enjoar, embalados com força pelas ondas do Seno Ultima Esperança - nome mais que adequado para um local tão desolador, pálido contraste com os Andes do nosso imaginário.
Mas isso foi só até abrirmos o fecho da tenda, na manhã seguinte: as Torres, douradas pelo sol matinal, estavam mesmo na nossa frente. Incongruentes, elevam-se a pique como os dentes partidos de uma serra, ao lado de uma montanha nevada e quase perfeita, que se reflecte num lago. Apercebemo-nos de que, para além da beleza, existe uma espécie de harmonia selvagem, um equilíbrio primário. E é impossível não querer mergulhar neste paraíso primordial, apesar de, no fundo, sentirmos que estarmos a mais.
As aves activavam-se. As estranhas bandurras, com um bico enorme, emitiam sons metálicos enquanto picavam no chão. Ali perto fica o rio que dá nome a tudo, o Paine, desdobrando-se em cascatas ruidosas. Preferimos subir pelo trilho que leva às Torres. Alguns nandus passeavam, e um deles parecia ter feito amizade com o pessoal de um refúgio, que o alimentava regularmente. Têm uns olhos meigos e pestanudos, uns furinhos no lugar das orelhas, e bufam como gatos quando estão furiosos. Famílias de guanacos também aproveitavam a bonança, junto ao rio. As mães amamentavam os mais pequenos, enquanto um ou dois jovens machos pareciam ser os vigias. Estes são os animais que mais evidenciam o êxito do Parque: existem em grande número e já não são muito assustadiços - os pumas também devem estar felizes com isso. Entre os que nunca vimos, mas que também aqui encontraram refúgio, conta-se o tímido veado huemul, em sério risco de extinção.
Atingimos o cimo do primeiro monte e fomos recompensados com a visão de três lagos de cores diferentes, um deles de um verde fantástico. Graças à pureza do ar e à quase completa ausência de poluição, as cores são homogéneas mas densas, ficando as surpresas e os contrastes, os verdes-esmeralda e os azuis-turquesa, reservados para os inúmeros lagos e lagoas provenientes do degelo. Atravessamos bosques sombrios, animados por ruídos de água; desertos de cascalho e areia, com declives fundos, em queda para o rio; pequeninos prados onde repousam troncos antigos, prateados por longos e duros Invernos. Finalmente, atingimos a antiga moreia de um glaciar que já não existe. Subimos com a ajuda das mãos. Trinta minutos mais tarde chegávamos ao sopé das Torres del Paine, na margem de um laguinho rectangular e pardacento. Vistas de perto ainda são mais estranhas, e agora junta-se-lhes a imponência. Não ultrapassam os dois mil e oitocentos metros de altura, mas são a pique, lisas, completamente nuas. Cada pedaço de neve que cai ecoa com estrondo nestas paredes de pedra, antes de resvalar até à água. O céu é de um azul glorioso e as Torres recortam-se, altivas, com o fumo branco de uma nuvem, esticada pelo vento, por detrás.
Metade do dia já tinha passado, mas foi difícil despedir-nos do cenário e das pedras da moreia, aquecidas pelo sol. Algumas tinham um estampado de líquenes escuros, em forma de árvore, que é coisa que não cresce por aqui. Antes do regresso, almoço de menu único: pão com queijo e cenouras, tudo regado com muita água fresca. Descemos antes do sol cair - a subida tinha-nos levado cerca de quatro horas, e o vento estava cada vez mais frio.
Nos dias seguintes, até regressarmos, a cada manhã perscrutávamos o horizonte, à procura da borrasca. Voltámos à entrada do Parque ameaçados por um céu escuro. Já perto da estrada, uma raposa farejava, aparentemente pouco incomodada connosco, ou com a presença activa dos guardas. O autocarro diário levou-nos até mais adiante, para continuarmos a exploração A estrada continua, passando em frente ao maciço do Paine Grande, o ponto mais alto do Parque, com três mil e cinquenta metros. Dos dois lados sucedem-se lagos de vários tamanhos, e centenas de guanacos curiosos espreitam o autocarro. A sua lã espessa protege-os das temperaturas baixas e da humidade permanente. Uma das manadas, disposta em fila sobre uma colina e com o perfil despenteado pelo vento, podia ser o símbolo do Parque: selvagens, de uma elegância bravia, representam a adaptação máxima a um ambiente muito rigoroso. O equilíbrio é visível - só estes bichos podiam ser felizes aqui. Para nós, a natureza é intratável; para eles, é um paraíso.
Descemos junto ao lago Nordeskjold, admirando as nuvens presas nos Cuernos del Paine, nome demasiado óbvio para uma montanha de excepção. Apesar de ser o terceiro ponto mais alto desta área protegida, com dois mil e seiscentos metros de altura, o que mais impressiona é a sua estrutura maciça e a forma original. O cimo está torneado em duas pontas aguçadas e negras, esculpidas por uma meteorologia agressiva e pela instabilidade da cordilheira, que continua a formar-se desde há cerca de vinte milhões de anos. As águas verdes do Nordeskjold descem em cascata para o lago Pehoé, de um azul irreal que varia com a luz do dia. Atravessamos o lago de barco, para acamparmos no sopé do Paine Grande, perto de um refúgio demasiado cheio. Umas paliçadas baixinhas ofereciam abrigos estratégicos às tendas, contra o vento gelado que, entretanto, se tinha levantado. Durante a noite, a força do vento aumentou e juntaram-se-lhe umas rajadas de chuva, violenta e ensurdecedora. Nada de grave, à parte algumas espias soltas. Aliás, começamos a desconfiar de que a chuva só existe para nos sentirmos mais felizes de cada vez que há sol...
Rumo ao glaciar Grey, debaixo de um céu azul e sol radioso. O caminho começa plano, por um desfiladeiro que vai alargando. Sobe-se depois, para chegar ao lago Grey, que vai espelhar as montanhas durante a manhã inteira. No meio, ficam duas ilhas que mais parecem duas batatas - pelo menos para quem anda com um bocado de fome. A vegetação é rasteira, feita de arbustos e moitas espinhosas, algumas com bagas vermelhas, outras com uma penugem delicada, que o vento vai arrancando. Mais tarde entramos em bosques húmidos, que dezenas de regatos transformam em lamaçais escorregadios. Finalmente, atingimos o refúgio Grey, um dos que já foi destruído pelo fogo. Recentemente reconstruído, está agora entregue à iniciativa privada - e fica tão perto do glaciar que, de cada vez que se desprende um pedaço de gelo, a casa abana. A uns minutos apenas, do cimo de um rochedo negro que serve de miradouro, podemos ver todo o glaciar, uma enorme extensão de gelo quase tão azul como o céu. Encrespada na frente e plana lá ao fundo, parece uma gélida representação dos Andes em volta: de pontas aguçadas, em lâmina, serrilhadas, um agulheiro onde a neve tem dificuldade em prender-se. De vez em quando, com o estrondo de um canhão, um pedaço de gelo desprende-se e afasta-se do glaciar, flutuando como um barco, empurrado pelo vento até a uma das margens. Podíamos ficar horas a apreciar o espectáculo sempre diferente da natureza em movimento: nuvens que ensombram o lago, mudando-lhe a cor, a luz do sol que esmorece, amaciando as arestas das torres de gelo. E ficámos.
Os dias que se seguiram mostraram-nos que a nossa felicidade dependia mesmo do sol. Cada caminhada pelo Parque era a demonstração perfeita de que, ao contrário do que é costume, os bichos nos aceitam, enquanto a natureza parece rejeitar-nos por completo.
Num dia, a chuva, batida por fortes rajadas de vento, encharcou-nos até aos ossos e fez engrossar a torrente de um rio a atravessar, em direcção ao Vale Francês. Ao enfrentarmos uma velha ponte carcomida, segura por arames pouco convincentes, batemos em retirada sem pôr a hipótese de atravessar a vau. Abrigámo-nos no bosque de lengas, mas o vento sacudia os telhados verdes das árvores, puxando nuvens e nevoeiro, de tal modo que quase deixámos de ver o caminho de regresso. Os únicos pontos de cor eram as estilizadas flores vermelhas do notro, e o verde do lago Nordenskjold, que foi ficando cinzento
De uma outra vez, percorremos mais de um quilómetro com uma manada de guanacos. As fêmeas miravam-nos com olhos meigos, avaliando as nossas intenções. Pastavam, rebolavam-se no chão, coçavam-se com as patas traseiras, como os cães. Um macho mantinha-nos à distância regulamentar, olhando-nos fixamente, com as orelhas para trás e um grande sorriso, provavelmente a afinar a pontaria. Mas nós já estávamos avisados: este é o bicho mais mal-educado da zona. Quando se enerva, sorri enganadoramente e cospe grandes jactos de saliva sobre o adversário - desconcertante e desencorajador, pelo menos para os humanos. Mais adiante, um grupo de sete nandus picava no chão. Distraídos com a novidade, mudámos de rumo, e quase nem nos apercebemos de que agora era a vez do guanaco andar atrás de nós, à espreita.
Esta característica incerteza no que diz respeito à meteorologia, com enormes quedas de chuva e neve durante todo o ano, resulta da combinação da sua localização austral, nos limites do Campo de Gelo do Sul, com a altitude: as montanhas acabam por funcionar como uma barreira contra a chuva que se forma no Oceano Pacífico, e que acaba por cair toda do lado chileno, transformando a Patagónia argentina numa área semidesértica. Acima dos dois mil metros, em vez de chuva há neve e gelo permanentes, criando um habitat demasiado rigoroso para a fixação de pessoas. Compare-se, por exemplo, com o Tibete, onde a altitude média é de três mil e quinhentos metros, ou com a Bolívia, na mesma cordilheira, onde também existem aldeias a esta altitude.
Definitivamente, a harmonia da paisagem não resulta de um clima ameno, compatível com os humanos. E ainda bem: quantos menos estranhos no paraíso, melhor.
Em el chalten e torres del paine o clima é uns dos mais imprevisíveis que se possa encontrar no planeta. De uma gama de sol e 25ºc até neve e -10º, você pode encontrar tudo: vento e sol, ventania e neve, furacão e chuva, furacão e sol, furacão e neve, sol e brisa...Um grande caleidoscópio climático. Isto se explica em grande parte pelo fato de as suas regiões estarem coladas ao campo de gelo sul, que é uma imensa massa de gelo, que possui micro clima próprio e em geral é ruim! Além é claro de se encontrarem em latitudes muito baixas, sendo também atingidas por frentes frias antárticas.
Esse clima imprevisível poderia ser um empecilho, mas na verdade é o que torna essa região tão fascinante e bela.
TORRES DEL PAINE
Parque Nacional Torres del Paine, Patagónia chilena fica no fim dos Andes , um paraíso de montanhas, lagos e glaciares, povoado de criaturas extraordinárias. Uma espécie de Arca de Noé, encalhada nas águas frias do extremo sul do Chile. A última fronteira, para quem procura a natureza no seu estado mais puro.
Punta Arenas tinha sido a última cidade “grande” - é capital de província - , e já anunciava este tempo incerto e cinzento. Como em todos os pontos do globo onde a meteorologia é pouco favorável, o casario tem mais cor do que a própria natureza. Há poucos prédios, e as casas multiplicam verdes, azuis, brancos e vermelhos, exorcizando a falta de cor e luz natural. Para incentivar a fixação de pessoas neste habitat tão difícil, na margem ocidental do Estreito de Magalhães, o governo chileno sempre ofereceu benefícios, promovendo o comércio e facilitando o acesso dos barcos ao porto. Até agora, Punta Arenas tem conseguido evitar os grandes problemas normais nas cidades, como o excesso de tráfego ou a falta de segurança. O ambiente ainda é muito pacato e familiar, embora já se conte com uma população de cerca de cem mil habitantes.
Não falamos de populações índias, claro, mas das posteriores e actuais. Para os Onas, Tehuelches, Alacalufes, e outras tribos que por aqui viviam, na época em que Fernão de Magalhães explorou a zona ao serviço dos reis de Espanha, a história foi muito diferente. Como a agricultura é quase impossível, os índios nativos desta área sobreviviam da recolecção, da pesca e da caça, sobretudo ao abundante guanaco, um parente do lama. Com a chegada dos colonos e dos seus imensos rebanhos, é provável que tenham achado as ovelhas mais fáceis de caçar...
A história é conhecida e, infelizmente, já se repetiu muitas vezes: com os seus próprios territórios interditos à caça, entraram em conflito com os colonos e foram dizimados sem dó nem piedade - chegaram a ser abatidos por caçadores profissionais contratados para o efeito. Como se não bastasse, com os europeus chegaram também doenças desconhecidas nesta parte do mundo, que se tornaram epidémicas e causaram milhares de baixas entre os nativos. Enfim, os primeiros habitantes da zona foram desaparecendo e dando lugar a museus e decorativos monumentos ao índio, espalhados pelo país. Em Punta Arenas, encontram-se os testemunhos desta época no Museo del Recuerdo e na Casa Braun-Menéndez, a mansão de um dos pioneiros-colonizadores.
Quanto a Magalhães, está no centro da praça, e parece surfar numa tábua de pedra, acompanhado por dois índios. Os Andes terminam aqui, na XIIª Região, a que tomou o seu nome: Região de Magalhães e Antárctica Chilena. Depois de sete mil e quinhentos quilómetros pelo interior da América do Sul, a grande cordilheira mergulha nas águas frias da Antárctica, numa apoteose de torres de pedra e glaciares deslizantes. Esta ponta sul da América está dividida entre o Chile e a Argentina, de terra firme à Ilha Grande de Terra do Fogo, de seu nome completo.
Apesar da aparente “inutilidade” do território, agora que o preço da lã já não sustenta folgadamente grandes fazendas, há algum gás e petróleo em jogo, e os dois países acabam por se desentender com alguma regularidade, a propósito de um lago ou de um glaciar. Como é próprio dos vizinhos. Aliás, os chilenos têm uma predilecção especial pelas “anedotas de argentinos”, sempre na linha da “definição de ego: aquele argentinozito que todos temos dentro de nós”. Sequestrados pelo mau tempo, entre dois passeios fugidios pelas ruas de traçado quadrangular, onde teimávamos em perder-nos, conversávamos com chilenos, de passagem pela cidade ou vizinhos de porta, fechados e despretensiosos, sempre prontos a dar conselhos sobre o seu país. Nenhum deles conhecia Torres del Paine.
PUERTO NATALES, A CAMINHO DE TORRES DEL PAINE
Mudámo-nos para Puerto Natales, duzentos e cinquenta quilómetros mais próximos do nosso objectivo. Da viagem, relembro apenas uma imensidão de estepe escondida no nevoeiro, e alguns nandus, as emas da Patagónia, que corriam ao pé da estrada. Quadrangular e colorida, a povoação pareceu-nos uma Punta Arenas em ponto mais pequeno: dezoito mil habitantes, sem contar com os milhares que a visitam todos os anos, com a única intenção de conhecer o Parque Nacional Torres del Paine, cento e oitenta mil hectares de Reserva de Biosfera da UNESCO, desde 1978. Chamam-lhe “Alasca em miniatura” e, diariamente, durante o Verão austral - o nosso Inverno -, autocarros fazem a ligação entre Puerto Natales e os dois postos mais importantes dos guardas-florestais.Este turismo sazonal transformou a vilória patagónica numa verdadeira indústria de pensões, restaurantes, agências de viagem, lojas de aluguer e venda de material de montanhismo, etc. Durante dois dias recolhemos informações, horários dos transportes, coleccionámos latas e pacotes pelos supermercados. Sabemos que há refúgios no Parque, mas estão demasiado perto da estrada e podem estar superlotados; quando partirmos para o interior, dificilmente estaremos perto de algum, de cada vez que tivermos fome.
Na pensão familiar que escolhemos, caminhantes de regresso confirmavam o que sabíamos sobre o lugar e muito mais, enquanto digeriam grossas postas de salmão, que aqui é mais barato que um pratinho de batatas fritas. Depois das fugazes refeições de campanha, todos tiravam a barriga de misérias. Havia quem se queixasse da dificuldade de alguns trilhos, lamentando os dias de chuva, sem visibilidade, o vento uivante e frio que lhes tinha roubado o sono. Dois alemães deambularam cinco dias no Parque sem ver o sol. Ninguém estava arrependido. À noite, cada um festejou a partida à sua maneira: o grupo de espanhóis apanhou uma bebedeira ruidosa, perturbando o grupo dos americanos, preocupados em ver um vídeo de aluguer com muita acção. Os alemães conversaram baixinho.
Do bom tempo, nem uma promessa. As nuvens continuaram negras, largando chapadas violentas de chuva. Cisnes de colo negro tentavam não enjoar, embalados com força pelas ondas do Seno Ultima Esperança - nome mais que adequado para um local tão desolador, pálido contraste com os Andes do nosso imaginário.
PARQUE NACIONAL TORRES DEL PAINE - O PARAÍSO À CHUVA
Finalmente, chegou a nossa vez - e ali estávamos nós a caminho, aparentemente sem sorte nenhuma com o tempo. Chegámos, registámo-nos na entrada do Parque, junto à lagoa Amarga; caminhámos sete quilómetros até um local de campismo debaixo de rajadas de vento, umas molhadas, outras secas. Amuados, mastigámos uma sande e metemo-nos na tenda. Se nos perguntassem de que lado estavam as Torres, não sabíamos responder.Mas isso foi só até abrirmos o fecho da tenda, na manhã seguinte: as Torres, douradas pelo sol matinal, estavam mesmo na nossa frente. Incongruentes, elevam-se a pique como os dentes partidos de uma serra, ao lado de uma montanha nevada e quase perfeita, que se reflecte num lago. Apercebemo-nos de que, para além da beleza, existe uma espécie de harmonia selvagem, um equilíbrio primário. E é impossível não querer mergulhar neste paraíso primordial, apesar de, no fundo, sentirmos que estarmos a mais.
As aves activavam-se. As estranhas bandurras, com um bico enorme, emitiam sons metálicos enquanto picavam no chão. Ali perto fica o rio que dá nome a tudo, o Paine, desdobrando-se em cascatas ruidosas. Preferimos subir pelo trilho que leva às Torres. Alguns nandus passeavam, e um deles parecia ter feito amizade com o pessoal de um refúgio, que o alimentava regularmente. Têm uns olhos meigos e pestanudos, uns furinhos no lugar das orelhas, e bufam como gatos quando estão furiosos. Famílias de guanacos também aproveitavam a bonança, junto ao rio. As mães amamentavam os mais pequenos, enquanto um ou dois jovens machos pareciam ser os vigias. Estes são os animais que mais evidenciam o êxito do Parque: existem em grande número e já não são muito assustadiços - os pumas também devem estar felizes com isso. Entre os que nunca vimos, mas que também aqui encontraram refúgio, conta-se o tímido veado huemul, em sério risco de extinção.
Guanacos junto à Laguna Amarga, Chile |
Atingimos o cimo do primeiro monte e fomos recompensados com a visão de três lagos de cores diferentes, um deles de um verde fantástico. Graças à pureza do ar e à quase completa ausência de poluição, as cores são homogéneas mas densas, ficando as surpresas e os contrastes, os verdes-esmeralda e os azuis-turquesa, reservados para os inúmeros lagos e lagoas provenientes do degelo. Atravessamos bosques sombrios, animados por ruídos de água; desertos de cascalho e areia, com declives fundos, em queda para o rio; pequeninos prados onde repousam troncos antigos, prateados por longos e duros Invernos. Finalmente, atingimos a antiga moreia de um glaciar que já não existe. Subimos com a ajuda das mãos. Trinta minutos mais tarde chegávamos ao sopé das Torres del Paine, na margem de um laguinho rectangular e pardacento. Vistas de perto ainda são mais estranhas, e agora junta-se-lhes a imponência. Não ultrapassam os dois mil e oitocentos metros de altura, mas são a pique, lisas, completamente nuas. Cada pedaço de neve que cai ecoa com estrondo nestas paredes de pedra, antes de resvalar até à água. O céu é de um azul glorioso e as Torres recortam-se, altivas, com o fumo branco de uma nuvem, esticada pelo vento, por detrás.
Metade do dia já tinha passado, mas foi difícil despedir-nos do cenário e das pedras da moreia, aquecidas pelo sol. Algumas tinham um estampado de líquenes escuros, em forma de árvore, que é coisa que não cresce por aqui. Antes do regresso, almoço de menu único: pão com queijo e cenouras, tudo regado com muita água fresca. Descemos antes do sol cair - a subida tinha-nos levado cerca de quatro horas, e o vento estava cada vez mais frio.
Nos dias seguintes, até regressarmos, a cada manhã perscrutávamos o horizonte, à procura da borrasca. Voltámos à entrada do Parque ameaçados por um céu escuro. Já perto da estrada, uma raposa farejava, aparentemente pouco incomodada connosco, ou com a presença activa dos guardas. O autocarro diário levou-nos até mais adiante, para continuarmos a exploração A estrada continua, passando em frente ao maciço do Paine Grande, o ponto mais alto do Parque, com três mil e cinquenta metros. Dos dois lados sucedem-se lagos de vários tamanhos, e centenas de guanacos curiosos espreitam o autocarro. A sua lã espessa protege-os das temperaturas baixas e da humidade permanente. Uma das manadas, disposta em fila sobre uma colina e com o perfil despenteado pelo vento, podia ser o símbolo do Parque: selvagens, de uma elegância bravia, representam a adaptação máxima a um ambiente muito rigoroso. O equilíbrio é visível - só estes bichos podiam ser felizes aqui. Para nós, a natureza é intratável; para eles, é um paraíso.
LAGOS DEL TORO, NORDESKJOLD E GREY
Quase no final da estrada fica a Administração Central do Parque, em Río Serrano, junto às margens do lago del Toro. Muito procurado pelas aves, parece apresentar a colecção inteira do Parque: cisnes de colo negro, gansos kaiken e uma variedade colorida de patos de vários tamanhos. Os guardas-florestais informam os visitantes e, durante a época alta, contam mesmo com reforços de colegas de outros países. A pé ou a cavalo, vão verificando se as actividades dos montanhistas que por aqui se aventuram não interferem perigosamente com a vida animal - ou se põem em risco a própria. De vez em quando, acontece que alguém se enterra nos pântanos, ou se despenha de ribanceiras rochosas. E mais do que um refúgio já foi completamente destruído pelo fogo, graças à falta de cuidado de quem lá dormiu. Em caso de dúvida sobre um percurso, também é com eles que contamos: todos os anos há pontes precárias que desabam, caminhos que ficam intransitáveis, rios que transbordam em certas épocas.Descemos junto ao lago Nordeskjold, admirando as nuvens presas nos Cuernos del Paine, nome demasiado óbvio para uma montanha de excepção. Apesar de ser o terceiro ponto mais alto desta área protegida, com dois mil e seiscentos metros de altura, o que mais impressiona é a sua estrutura maciça e a forma original. O cimo está torneado em duas pontas aguçadas e negras, esculpidas por uma meteorologia agressiva e pela instabilidade da cordilheira, que continua a formar-se desde há cerca de vinte milhões de anos. As águas verdes do Nordeskjold descem em cascata para o lago Pehoé, de um azul irreal que varia com a luz do dia. Atravessamos o lago de barco, para acamparmos no sopé do Paine Grande, perto de um refúgio demasiado cheio. Umas paliçadas baixinhas ofereciam abrigos estratégicos às tendas, contra o vento gelado que, entretanto, se tinha levantado. Durante a noite, a força do vento aumentou e juntaram-se-lhe umas rajadas de chuva, violenta e ensurdecedora. Nada de grave, à parte algumas espias soltas. Aliás, começamos a desconfiar de que a chuva só existe para nos sentirmos mais felizes de cada vez que há sol...
Rumo ao glaciar Grey, debaixo de um céu azul e sol radioso. O caminho começa plano, por um desfiladeiro que vai alargando. Sobe-se depois, para chegar ao lago Grey, que vai espelhar as montanhas durante a manhã inteira. No meio, ficam duas ilhas que mais parecem duas batatas - pelo menos para quem anda com um bocado de fome. A vegetação é rasteira, feita de arbustos e moitas espinhosas, algumas com bagas vermelhas, outras com uma penugem delicada, que o vento vai arrancando. Mais tarde entramos em bosques húmidos, que dezenas de regatos transformam em lamaçais escorregadios. Finalmente, atingimos o refúgio Grey, um dos que já foi destruído pelo fogo. Recentemente reconstruído, está agora entregue à iniciativa privada - e fica tão perto do glaciar que, de cada vez que se desprende um pedaço de gelo, a casa abana. A uns minutos apenas, do cimo de um rochedo negro que serve de miradouro, podemos ver todo o glaciar, uma enorme extensão de gelo quase tão azul como o céu. Encrespada na frente e plana lá ao fundo, parece uma gélida representação dos Andes em volta: de pontas aguçadas, em lâmina, serrilhadas, um agulheiro onde a neve tem dificuldade em prender-se. De vez em quando, com o estrondo de um canhão, um pedaço de gelo desprende-se e afasta-se do glaciar, flutuando como um barco, empurrado pelo vento até a uma das margens. Podíamos ficar horas a apreciar o espectáculo sempre diferente da natureza em movimento: nuvens que ensombram o lago, mudando-lhe a cor, a luz do sol que esmorece, amaciando as arestas das torres de gelo. E ficámos.
Os dias que se seguiram mostraram-nos que a nossa felicidade dependia mesmo do sol. Cada caminhada pelo Parque era a demonstração perfeita de que, ao contrário do que é costume, os bichos nos aceitam, enquanto a natureza parece rejeitar-nos por completo.
Num dia, a chuva, batida por fortes rajadas de vento, encharcou-nos até aos ossos e fez engrossar a torrente de um rio a atravessar, em direcção ao Vale Francês. Ao enfrentarmos uma velha ponte carcomida, segura por arames pouco convincentes, batemos em retirada sem pôr a hipótese de atravessar a vau. Abrigámo-nos no bosque de lengas, mas o vento sacudia os telhados verdes das árvores, puxando nuvens e nevoeiro, de tal modo que quase deixámos de ver o caminho de regresso. Os únicos pontos de cor eram as estilizadas flores vermelhas do notro, e o verde do lago Nordenskjold, que foi ficando cinzento
De uma outra vez, percorremos mais de um quilómetro com uma manada de guanacos. As fêmeas miravam-nos com olhos meigos, avaliando as nossas intenções. Pastavam, rebolavam-se no chão, coçavam-se com as patas traseiras, como os cães. Um macho mantinha-nos à distância regulamentar, olhando-nos fixamente, com as orelhas para trás e um grande sorriso, provavelmente a afinar a pontaria. Mas nós já estávamos avisados: este é o bicho mais mal-educado da zona. Quando se enerva, sorri enganadoramente e cospe grandes jactos de saliva sobre o adversário - desconcertante e desencorajador, pelo menos para os humanos. Mais adiante, um grupo de sete nandus picava no chão. Distraídos com a novidade, mudámos de rumo, e quase nem nos apercebemos de que agora era a vez do guanaco andar atrás de nós, à espreita.
TROVÕES NA DESPEDIDA DO PARQUE TORRES DEL PAINE
Na última noite, despedimo-nos de Torres del Paine com um espectáculo de luz e som sobre o Paine Grande: uma enorme nuvem negra de auréola amarela instalou-se sobre o cume, tornando-o irreconhecível. De vez em quando, um relâmpago atravessava-a e ouvia-se um trovão. Na janela do refúgio caíram umas gotas grossas. De manhã, a montanha estava diferente, com as formas aguçadas dissimuladas sob um enfarinhado de neve.Esta característica incerteza no que diz respeito à meteorologia, com enormes quedas de chuva e neve durante todo o ano, resulta da combinação da sua localização austral, nos limites do Campo de Gelo do Sul, com a altitude: as montanhas acabam por funcionar como uma barreira contra a chuva que se forma no Oceano Pacífico, e que acaba por cair toda do lado chileno, transformando a Patagónia argentina numa área semidesértica. Acima dos dois mil metros, em vez de chuva há neve e gelo permanentes, criando um habitat demasiado rigoroso para a fixação de pessoas. Compare-se, por exemplo, com o Tibete, onde a altitude média é de três mil e quinhentos metros, ou com a Bolívia, na mesma cordilheira, onde também existem aldeias a esta altitude.
Definitivamente, a harmonia da paisagem não resulta de um clima ameno, compatível com os humanos. E ainda bem: quantos menos estranhos no paraíso, melhor.
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